Violência Obstétrica: A Violação da Dignidade no Nascimento e o Direito à Reparação

O nascimento de um filho deveria ser um dos momentos mais sublimes e respeitosos na vida de uma mulher e de sua família. Infelizmente, para muitas brasileiras, esse momento é marcado por dor, desrespeito e trauma. A violência obstétrica é uma realidade grave e silenciosa, que se manifesta através de procedimentos desnecessários, humilhações verbais, negligência e a recusa em ouvir as escolhas da parturiente. Embora seja frequentemente discutida no campo do Direito Médico, a violência obstétrica é, em sua essência, uma profunda violação ao Direito de Família e aos princípios constitucionais, pois atenta contra a dignidade, a autonomia, a integridade física e psíquica da mulher no exato momento em que ela está exercendo sua parentalidade. Reconhecer essa violência é o primeiro passo para combatê-la e buscar a devida reparação na Justiça.
O que é Violência Obstétrica? Muito Além da Violência Física
É um erro pensar que a violência obstétrica se resume a uma agressão física. Ela é um conceito amplo que engloba qualquer ato que desrespeite o corpo, as decisões e os sentimentos da mulher durante a gestação, o parto e o pós-parto. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde do Brasil reconhecem diversas práticas como violência obstétrica, entre elas:
- Abuso Verbal e Psicológico: Gritos, ameaças, humilhações, comentários sobre a vida sexual da mulher, ou frases como “na hora de fazer você não gritou, né?”.
- Procedimentos Desnecessários ou Sem Consentimento: A realização rotineira de episiotomia (corte no períneo), o uso excessivo de ocitocina sintética para acelerar o parto, ou a manobra de Kristeller (pressionar a barriga da mãe para “empurrar” o bebê), prática proscrita pela OMS.
- Negligência: Negar analgesia quando solicitada e possível, ou demorar para atender a um pedido de ajuda.
- Impedir a Presença de um Acompanhante: A Lei do Acompanhante (Lei nº 11.108/2005) garante à mulher o direito de ter uma pessoa de sua escolha ao seu lado durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto. Negar esse direito é uma forma de violência.
Seu Corpo, Suas Regras: O Direito ao Consentimento Informado no Parto
No cerne da luta contra a violência obstétrica está o princípio do consentimento livre e informado, uma expressão direta da autonomia da vontade e da dignidade. Nenhum procedimento médico pode ser realizado no corpo de uma mulher sem sua autorização explícita, após ela ter recebido informações claras, honestas e completas sobre os riscos, benefícios e alternativas. A mulher é a protagonista de seu parto, e não um objeto passivo nas mãos da equipe médica. Ela tem o direito de participar de todas as decisões e de ter suas escolhas respeitadas, desde que não coloquem a sua vida ou a do bebê em risco iminente. Um documento que tem ganhado força para garantir esse direito é o Plano de Parto, onde a gestante registra por escrito seus desejos e suas recusas para o momento do nascimento.
Como Identificar e Provar a Violência Sofrida?
Provar a violência obstétrica pode ser um desafio, pois ela muitas vezes ocorre a portas fechadas e é mascarada como “procedimento padrão”. Contudo, é possível construir um caso sólido. O primeiro passo é solicitar uma cópia completa de seu prontuário médico, que deve conter o registro de todos os procedimentos realizados. O depoimento do acompanhante é uma prova testemunhal de imenso valor, pois ele presenciou os fatos. Relatos escritos e detalhados feitos pela própria mulher logo após o ocorrido (enquanto a memória está fresca), fotos, vídeos (se existirem) e, fundamentalmente, laudos psicológicos que atestem o trauma e o estresse pós-traumático são essenciais. Se possível, denuncie o ocorrido nos canais de ouvidoria do hospital e nos conselhos de medicina e enfermagem.
A Busca por Justiça: Responsabilidade do Hospital, do Médico e o Dever de Indenizar
A mulher que sofre violência obstétrica pode e deve buscar reparação na Justiça. A ação de indenização por danos morais busca compensar o sofrimento, a humilhação e o trauma psicológico. Pode haver também a pretensão de danos estéticos (em caso de cicatrizes deformantes) e danos materiais (para custear tratamentos médicos e psicológicos decorrentes da violência). A responsabilidade, em geral, é solidária entre o médico (ou a equipe) que praticou os atos e o hospital, que tem o dever de fiscalizar e garantir a qualidade e a segurança de seus serviços. Processar os responsáveis não é apenas uma busca por reparação individual; é um ato político, que ajuda a dar visibilidade ao problema, a inibir novas práticas e a garantir que o nascimento seja, para todas as mulheres, um momento de respeito, dignidade e alegria.