Usucapião Familiar: A Possibilidade de Aquisição do Imóvel do Casal por Abandono de Lar

Imagine o seguinte cenário: o casamento ou a união estável acabou. Um dos cônjuges sai de casa, desaparece, corta todo o contato e deixa para trás não apenas a relação, mas também todas as responsabilidades com a família e com o imóvel. O tempo passa. Aquele que ficou arca sozinho com todas as despesas da casa, cuida dos filhos e da manutenção do bem. Anos depois, surge a pergunta: será que, por direito, esse imóvel agora pode pertencer integralmente a quem ficou e cuidou de tudo? A resposta pode ser sim, por meio de um instituto jurídico específico e muito particular: a usucapião familiar. Prevista no artigo 1.240-A do Código Civil, essa ferramenta foi criada para proteger o direito à moradia daquele que assumiu todos os encargos após o abandono do outro, mas sua aplicação exige o cumprimento de requisitos extremamente rigorosos.

A usucapião familiar é uma modalidade especial de aquisição de propriedade que se aplica exclusivamente a ex-cônjuges ou ex-companheiros. Ela permite que aquele que permaneceu no imóvel do casal adquira a parte que pertencia ao outro, tornando-se o único proprietário. O objetivo da lei é sancionar a conduta daquele que não apenas deixou o lar, mas que efetivamente abandonou a família, rompendo com o dever de assistência e solidariedade, e, ao mesmo tempo, garantir a segurança da moradia para a parte que ficou e manteve a função social da propriedade. É, portanto, uma medida com um forte caráter social e punitivo.

Para ter direito à usucapião familiar, não basta apenas ter ficado no imóvel. É preciso preencher, cumulativamente, uma lista de requisitos muito estrita, e a falta de um único deles inviabiliza o pedido. O checklist legal é o seguinte: 1) Posse contínua por 2 anos ininterruptos, contados a partir do efetivo abandono do lar; 2) Posse direta e com exclusividade, ou seja, a pessoa deve estar morando no imóvel; 3) O imóvel deve ser urbano com área de até 250m² ou rural (a lei não especifica área para este, sendo analisado caso a caso); 4) O cônjuge que pleiteia a usucapião não pode ser proprietário de nenhum outro imóvel, urbano ou rural; e 5) O requisito mais crucial e controverso: a comprovação do “abandono do lar” pelo outro.

É aqui que reside a maior dificuldade. “Abandono do lar” para fins de usucapião familiar é muito mais do que a simples saída de casa após o término da relação. A saída consensual ou mesmo a expulsão do lar em casos de violência doméstica não configuram abandono. O conceito exigido pela lei é o de um abandono voluntário, injustificado e absoluto dos deveres de assistência para com a família. Envolve o desaparecimento, o corte de qualquer auxílio material (como o pagamento de pensão ou das despesas do imóvel) e a demonstração de um total desinteresse pelo destino da família e do patrimônio. Se o ex-cônjuge que saiu continua a participar da vida dos filhos e a contribuir financeiramente, ainda que minimamente, a tese de abandono dificilmente se sustentará.

Para ingressar com o pedido, é necessário ajuizar uma ação de usucapião específica, com a representação de um advogado. O sucesso da ação dependerá da robustez das provas apresentadas. É preciso juntar comprovantes de todas as despesas com o imóvel (IPTU, contas de consumo, notas de reformas) em seu nome, provar que o outro não contribuiu com nada, apresentar declarações de testemunhas (vizinhos, por exemplo) que atestem o abandono e, se for o caso, juntar provas da inadimplência de pensão alimentícia. A usucapião familiar é, portanto, uma ferramenta jurídica poderosa, mas de aplicação restrita. É um direito para situações extremas de negligência, e não uma regra geral para todos que permanecem no imóvel após o divórcio.

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