Transexualidade e Direito de Família: Retificação de Registro e os Direitos da Personalidade

O direito a ser quem se é. Essa frase, simples e poderosa, resume uma das maiores conquistas da cidadania no Brasil recente: o direito de pessoas transgênero a terem sua identidade de gênero reconhecida pelo Estado. Longe de ser uma mera formalidade, a retificação do nome e do gênero nos documentos civis é a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana, um ato que alinha a realidade jurídica à realidade existencial do indivíduo. Essa vitória, consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tem profundos e importantes reflexos no Direito de Família, garantindo a segurança e a continuidade dos laços de casamento e de filiação. Este é um guia completo sobre esse direito fundamental e suas implicações.
O Direito à Identidade: A Decisão do STF e o Provimento 73 do CNJ
Por muitos anos, uma pessoa trans que quisesse retificar seus documentos enfrentava um processo judicial longo, caro e, muitas vezes, humilhante, que frequentemente exigia a comprovação da realização de cirurgias de redesignação sexual. O STF, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, pôs fim a esse sofrimento. A Corte decidiu que a identidade de gênero é uma manifestação da autodeterminação e da personalidade, e que toda pessoa tem o direito de retificar seu prenome e gênero nos registros civis sem a necessidade de cirurgia ou de autorização judicial. Para dar eficácia a essa decisão, o CNJ editou o Provimento nº 73/2018, que padronizou o procedimento, permitindo que ele seja feito de forma administrativa, diretamente no Cartório de Registro Civil.
Passo a Passo no Cartório: Como Realizar a Retificação Sem Processo Judicial
O Provimento 73 do CNJ tornou o procedimento mais ágil e acessível. Para solicitar a retificação, a pessoa maior de 18 anos deve comparecer a qualquer Cartório de Registro Civil e apresentar um requerimento junto com uma série de documentos. Embora a lista possa variar ligeiramente, os principais são:
- Certidão de nascimento atualizada;
- Documentos de identidade (RG, CPF, Título de Eleitor, etc.);
- Comprovante de residência;
- Certidões dos distribuidores cíveis e criminais da Justiça Estadual e Federal, e da Justiça do Trabalho e Eleitoral, do local de residência dos últimos cinco anos. É crucial destacar: não é necessário apresentar laudo médico ou psicológico que ateste a transexualidade. A autodeclaração da pessoa é o elemento central. O cartório, após conferir os documentos e a ausência de impedimentos legais (como processos por fraude), realizará a averbação da alteração, que se estenderá a todos os outros registros.
“Meu Casamento Acaba se Eu Retificar meu Gênero?”
Este é um dos medos mais comuns e uma dúvida jurídica importante. A resposta é um categórico não. A retificação de nome e gênero de um dos cônjuges não dissolve, não anula e não modifica a validade do casamento previamente celebrado. O vínculo matrimonial permanece completamente intacto, com todos os seus direitos e deveres (fidelidade, mútua assistência, regime de bens, etc.). O que ocorre é uma mera alteração no registro: um casamento que antes era heterossexual passa a ser, juridicamente, um casamento homoafetivo, figura plenamente reconhecida e protegida pelo Direito brasileiro. A transição de um dos parceiros não rompe o laço jurídico familiar.
Parentalidade Trans e o Registro dos Filhos: Seus Direitos como Pai ou Mãe
Outro ponto fundamental é a preservação dos direitos parentais. A transição de gênero de uma pessoa em nada afeta seus direitos e deveres em relação aos filhos, como o poder familiar, a guarda e o dever de pagar pensão. A relação de filiação é imutável. Além disso, o direito à identidade se estende à forma como a parentalidade é registrada. Se uma mulher trans, que foi designada homem ao nascer, tiver um filho, ela tem o direito de ser registrada na certidão de nascimento da criança como “mãe”. Da mesma forma, um homem trans que geste uma criança será registrado como “pai”. A filiação é designada de acordo com o gênero com o qual a pessoa se identifica, e não com sua função biológica na concepção, garantindo coerência e respeito à dignidade em toda a documentação familiar.