Pessoas com Deficiência e Direito de Família: Autonomia para Casar, Ter Filhos e Construir uma Família

Historicamente, o Direito tratava a pessoa com deficiência, especialmente intelectual ou mental, sob um prisma de incapacidade. A interdição era vista como o caminho natural, um processo que retirava da pessoa o poder de tomar decisões sobre a própria vida, incluindo as mais íntimas, como casar, ter filhos ou administrar seus bens. Essa visão, que infantilizava e restringia direitos, foi demolida por uma das leis mais importantes e humanizadoras do Brasil: o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). O EPD promoveu uma verdadeira revolução, afirmando que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, garantindo-lhe total autonomia para exercer seus direitos familiares e existenciais, em alinhamento com o princípio constitucional da dignidade.
A Revolução do Estatuto: O Fim da “Incapacidade Civil” Automática
A mudança mais profunda do EPD foi a alteração do Código Civil. Antes, a pessoa com deficiência mental ou intelectual podia ser considerada “absolutamente incapaz”. Hoje, essa categoria não existe mais. A regra agora é que toda pessoa com deficiência é, em princípio, plenamente capaz para exercer os atos da vida civil. A deficiência não é mais sinônimo de incapacidade. A curatela (antiga interdição) passou a ser uma medida extraordinária, aplicada apenas quando e na medida em que for estritamente necessária, e afetando somente os atos de natureza patrimonial e negocial, e não os direitos existenciais.
O Direito ao Casamento e à Formação de Família sem Interdição
Uma das consequências mais diretas dessa mudança é a garantia do direito de casar e constituir união estável. O artigo 6º do Estatuto é explícito ao afirmar que a deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa para, entre outros atos, casar-se e constituir união estável. Isso significa que uma pessoa com deficiência intelectual, síndrome de Down ou qualquer outra condição não precisa mais de autorização de um curador para se casar. A decisão pertence exclusivamente a ela e a seu(sua) parceiro(a). Impedir ou criar embaraços a esse direito com base na deficiência é um ato discriminatório e ilegal.
Parentalidade e Deficiência: A Lei Assegura o Direito de Cuidar dos Próprios Filhos
O Estatuto também foi enfático ao proteger o direito à parentalidade. Muitas vezes, pessoas com deficiência eram consideradas inaptas para exercer o cuidado com os filhos, correndo o risco de perderem a guarda. O EPD combate essa visão capacitista. A lei assegura o direito da pessoa com deficiência de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos, de decidir sobre ter ou não filhos, e de exercer a guarda, a tutela, a curatela e a adoção, em igualdade de condições com as demais pessoas. A mera existência de uma deficiência não pode ser o motivo para impedir alguém de ser pai ou mãe. A análise, como em qualquer caso, deve se basear na capacidade real de oferecer cuidado, afeto e um ambiente seguro, e não em preconceitos sobre a condição da pessoa.
Tomada de Decisão Apoiada: Uma Alternativa à Curatela que Valoriza a Autonomia
Pensando em situações em que a pessoa com deficiência tem alguma dificuldade para gerir seus atos patrimoniais, mas não a ponto de precisar de uma curatela, o EPD criou uma ferramenta inovadora: a tomada de decisão apoiada. Trata-se de um processo judicial no qual a própria pessoa com deficiência escolhe, no mínimo, duas pessoas de sua extrema confiança (os apoiadores) para lhe prestar auxílio e fornecer os elementos e informações necessários para que ela possa tomar suas próprias decisões. Diferentemente da curatela, onde o curador representa ou assiste a pessoa, aqui os apoiadores apenas oferecem suporte, e a decisão final é sempre da pessoa com deficiência. É um mecanismo que valoriza a autonomia e a vontade do indivíduo, sendo a expressão máxima do espírito inclusivo e dignificante do Estatuto.