“Pai Registral Não é o Pai Biológico”: É Possível Anular uma Paternidade Decidida pela Justiça no Passado?

Imagine que um homem foi declarado pai de uma criança em um processo judicial há 20 anos, em uma época em que o exame de DNA era raro ou inacessível. Anos depois, um exame particular revela que ele não é o pai biológico. Ou, o contrário: um homem que sempre acreditou ser o pai descobre, por um exame, que foi enganado. Seria possível reabrir esses casos e anular a paternidade, mesmo que a decisão judicial já tenha transitado em julgado, ou seja, tornado-se definitiva? Esta questão coloca em choque dois dos mais importantes princípios do Direito: de um lado, a segurança jurídica, representada pela “coisa julgada”, e, de outro, o direito à verdade e à identidade, pilares da dignidade humana. A resposta do Supremo Tribunal Federal (STF) para esse dilema é complexa e demonstra a sensibilidade do Direito de Família.
O que é a “Coisa Julgada” e Por que Ela Traz Segurança Jurídica?
A coisa julgada é a qualidade que torna uma decisão judicial imutável e indiscutível, tanto dentro quanto fora do processo em que foi proferida. Ela é uma garantia constitucional fundamental. Seu objetivo é trazer estabilidade e segurança para as relações sociais, impedindo que um mesmo conflito seja discutido eternamente na Justiça. Uma vez que um processo chega ao fim e não cabe mais nenhum recurso, a decisão se solidifica. Em tese, ela não poderia mais ser alterada. Essa é a regra de ouro do nosso sistema processual. Mas, como toda regra, ela comporta exceções.
A Exceção à Regra: O Peso do DNA e do Direito à Identidade
Nas ações de paternidade, o bem jurídico em jogo não é um simples contrato ou uma dívida; é o estado de filiação, a identidade de uma pessoa. O direito de saber quem você é, de conhecer sua origem genética e de ter um registro civil que corresponda à verdade, é um direito da personalidade tão fundamental que, em certos casos, pode ter um peso maior do que a necessidade de estabilidade da coisa julgada. O surgimento e a popularização do exame de DNA, com sua precisão científica, criaram uma nova realidade. Manter uma decisão antiga, sabidamente contrária à verdade biológica, poderia significar perpetuar uma injustiça e uma violação à dignidade tanto do suposto pai quanto do filho.
A Posição do STF: Quando a Busca pela Verdade Pode Reabrir um Caso?
O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 363.889, enfrentou diretamente essa questão. A Corte decidiu que a coisa julgada em ações de investigação de paternidade pode, sim, ser relativizada, permitindo a reabertura do caso, desde que a decisão original não tenha se baseado em um exame de DNA. Ou seja, se no processo antigo a paternidade foi declarada com base apenas em testemunhas ou na recusa do suposto pai em fazer um exame de sangue de baixa precisão (comum no passado), e agora surge a possibilidade de fazer um exame de DNA, a busca pela verdade deve prevalecer. Contudo, o mesmo STF decidiu que, se no processo original já foi realizado um exame de DNA, considerado válido e eficaz à época, a decisão não poderá ser reaberta, mesmo que novas tecnologias pudessem, em tese, oferecer resultados ainda mais precisos. A Corte buscou um equilíbrio: permite-se a correção de erros claros do passado, mas não a rediscussão eterna de casos já analisados com base em prova científica robusta.
As Consequências da Anulação: A Paternidade Socioafetiva como Limite
É crucial entender que, mesmo que um exame de DNA prove que o pai registral não é o biológico, a anulação da paternidade não é automática. Se, ao longo de todos esses anos, foi construído um forte vínculo de afeto entre o pai registral e o filho, a Justiça pode entender que ali se formou uma paternidade socioafetiva, que não pode ser desconstituída pela mera descoberta da verdade biológica. Nesse caso, o vínculo de cuidado e amor, que também é um pilar da dignidade do filho, prevalece. A anulação da paternidade registral só ocorrerá se ficar provado que nunca existiu um laço de afeto e que o registro foi fruto de um erro ou de um engano. É a demonstração final de que, no Direito de Família, a verdade dos fatos e do coração muitas vezes fala mais alto que a verdade do sangue ou do papel.