O Afeto como Valor Jurídico: O Princípio da Afetividade e seus Efeitos Práticos no Direito de Família

O que realmente constitui uma família? Seria apenas o sangue, o sobrenome ou um papel assinado no cartório? Por séculos, a resposta foi sim. Mas o Direito de Família brasileiro passou por uma de suas mais belas e profundas transformações, colocando no centro do debate um elemento que sempre existiu, mas que a lei teimava em ignorar: o afeto. Hoje, o amor, o cuidado, a dedicação e a construção diária de um laço são vistos pela Justiça como fatos jurídicos poderosos. O Princípio da Afetividade, embora não esteja escrito com todas as letras na Constituição, foi “descoberto” por juízes e juristas como um valor que emana diretamente da dignidade humana e que tem o poder de criar, moldar e até mesmo redefinir os vínculos familiares.
A Revolução Silenciosa: De Onde Veio o ‘Princípio da Afetividade’?
A ideia de que o afeto tem força de lei é uma construção doutrinária e jurisprudencial. Grandes juristas, como Paulo Lôbo e Maria Berenice Dias, perceberam que o modelo familiar rígido e puramente biológico do antigo Código Civil não correspondia mais à realidade social. A própria Constituição de 1988, ao focar na dignidade, na igualdade e na proteção integral da criança, abriu caminho para uma nova interpretação. A família não era mais apenas aquela do casamento formal. Era também a da união estável, a monoparental e, principalmente, a “família eudemonista” — aquela que se une com o propósito de buscar a felicidade e a realização pessoal de seus membros. Nesse novo cenário, o afeto surgiu como o cimento que une essas novas estruturas.
Pai é Quem Cria: A Força da Paternidade Socioafetiva
Talvez o exemplo mais emblemático do princípio da afetividade seja o reconhecimento da paternidade (ou maternidade) socioafetiva. Ela ocorre quando uma pessoa, sem ter vínculo biológico, cria uma criança como se sua filha fosse, dando-lhe amor, sustento, educação e, o mais importante, tratando-a publicamente e em seu íntimo como tal. É a famosa “posse de estado de filho”. Durante muito tempo, o exame de DNA era visto como a “prova rainha” e incontestável. Hoje, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal entendem que a verdade socioafetiva, construída ao longo de uma vida, pode ter o mesmo ou até mais peso jurídico que a verdade biológica. Reconhecer esse vínculo no registro civil não é apenas um ato de justiça, é a consagração da dignidade e da história daquela relação.
Multiparentalidade: Quando o Coração (e o Registro) Têm Espaço para Mais de Um
E se uma criança tiver um pai biológico presente e um padrasto que a criou desde pequena com o mesmo amor e dedicação? Ela precisaria escolher? A resposta do STF, baseada no princípio da afetividade, é um sonoro “não”. Surge aí a multiparentalidade, a possibilidade de uma pessoa ter em seu registro de nascimento o nome de mais de um pai ou de mais de uma mãe (ex: dois pais e uma mãe, duas mães e um pai). A lógica é simples e revolucionária: o afeto não exclui; ele soma. Se múltiplos vínculos de cuidado e amor existem na vida real e são importantes para a criança, não há por que a lei obrigá-la a renunciar a um deles. É a vida real, em sua complexidade e beleza, sendo finalmente acolhida pelo Direito.
O Afeto como Bússola para Decisões Judiciais
O princípio da afetividade não se limita a definir quem é pai ou mãe. Ele se tornou uma bússola que guia o juiz em diversas outras decisões sensíveis. Na disputa de uma guarda, por exemplo, o magistrado buscará entender com quem a criança tem o vínculo afetivo mais forte e consolidado. Em um processo de adoção, a existência de um laço afetivo prévio com a família substituta (a chamada “adoção intuito personae”) pode ser decisiva para o resultado. O afeto se transformou em um critério jurídico palpável. Entender este princípio é fundamental para compreender o Direito de Família atual. Ele nos mostra que a lei pode, sim, ser um reflexo dos nossos melhores sentimentos, protegendo as relações que, independentemente de sua origem, são fundadas no cuidado e no amor.