“No-Show”: O Cancelamento Automático do Trecho de Volta e a Luta dos Consumidores na Justiça

Você comprou uma passagem de ida e volta, mas um imprevisto o fez perder o voo de ida. Sem problemas, você pensa. Você resolve a situação por conta própria, compra uma nova passagem só de ida em outra companhia e chega ao seu destino. Dias depois, ao tentar embarcar no voo de volta original, você é surpreendido no balcão de check-in: “Sua passagem foi cancelada, senhor(a)”. O motivo? Você não compareceu ao voo de ida, o que a companhia aérea classifica como “no-show” e usa como justificativa para cancelar unilateralmente o trecho de volta. Essa prática, considerada extremamente abusiva, tem sido um campo de batalha intenso entre consumidores e empresas, com a justiça se posicionando firmemente ao lado do passageiro.
A Lógica Abusiva da Companhia Aérea
A justificativa das companhias para o cancelamento automático é baseada em uma interpretação distorcida do contrato. Elas alegam que a passagem de ida e volta constitui um contrato único e indivisível, e que o não comparecimento na primeira “etapa” representaria um abandono do contrato como um todo. Além disso, há uma razão puramente comercial: ao cancelar sua volta, a empresa libera o assento e pode vendê-lo novamente, muitas vezes por um preço mais alto de última hora, lucrando duas vezes com o mesmo lugar.
Essa lógica, no entanto, ignora um fato fundamental: o consumidor pagou por ambos os trechos. O serviço foi contratado e quitado. O fato de ele não ter utilizado o trecho de ida, por qualquer motivo que seja, não dá à companhia o direito de se apropriar do trecho de volta, que também foi pago.
A Posição Dominante da Justiça: Prática Abusiva e Venda Casada
O Poder Judiciário brasileiro, em especial o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem combatido essa prática de forma consistente. A decisão mais importante sobre o tema (REsp 1.699.780) estabeleceu que o cancelamento unilateral do trecho de volta por “no-show” no trecho de ida é uma prática abusiva e ilegal. Os juízes fundamentam essa decisão em dois pontos principais:
- Vantagem Manifestamente Excessiva (Art. 39, V, do CDC): Ao cancelar a volta e revender o assento, a companhia aérea obtém uma vantagem desproporcional e injusta, em detrimento do consumidor que pagou pelo serviço e se vê desamparado.
- Venda Casada por Via Indireta: A prática condiciona a utilização do serviço de volta à utilização do serviço de ida. O STJ entende que, embora o consumidor tenha comprado os dois juntos, eles são serviços distintos e independentes. O consumidor tem o direito de usar apenas um deles se assim desejar. Forçar o uso do primeiro para garantir o segundo é análogo a uma venda casada, o que é proibido pelo CDC.
O Dano Moral e Material Decorrente do Cancelamento
Ser barrado no embarque do voo de volta gera uma cascata de prejuízos e um dano moral evidente. Imagine o desespero de estar em outra cidade, talvez até em outro país, e descobrir que você não tem como voltar para casa. Os danos são claros:
- Dano Material: Você será forçado a comprar uma nova passagem de volta, geralmente a preços exorbitantes de última hora. Esse custo deve ser integralmente ressarcido pela companhia aérea que praticou o cancelamento abusivo.
- Dano Moral: A situação é inerentemente humilhante e estressante. O sentimento de abandono, a necessidade de gastar um dinheiro não previsto, o potencial prejuízo de perder um dia de trabalho ou um compromisso no dia seguinte. A jurisprudência considera o dano moral nesse caso como presumido (in re ipsa), ou seja, a própria ocorrência do fato já basta para gerar o dever de indenizar.
Como se Prevenir e Como Agir se Acontecer com Você
Embora a prática seja ilegal, as companhias ainda a aplicam, contando com o desconhecimento do consumidor.
- Ação Preventiva: Se você sabe que vai perder o voo de ida, a melhor atitude é comunicar à companhia aérea, com a máxima antecedência possível, que você não irá utilizar o primeiro trecho, mas que tem a intenção de utilizar o trecho de volta. Faça essa comunicação por um canal que gere protocolo ou registro (e-mail, chat), para ter uma prova. Embora não seja uma obrigação sua, essa atitude demonstra sua boa-fé e dificulta a alegação da empresa.
- Ação Reativa: Se você for surpreendido com o cancelamento no aeroporto, mantenha a calma e comece a produzir provas. Peça uma declaração por escrito do motivo do cancelamento. Se negarem, filme sua conversa com o atendente. Compre a nova passagem de volta e guarde o comprovante. Ao retornar, procure o Juizado Especial Cível ou um advogado para buscar o ressarcimento do dano material (o custo da nova passagem) e uma indenização robusta pelo dano moral sofrido.
O “no-show” é um exemplo clássico de como as companhias aéreas, por vezes, colocam o lucro acima da lei e do respeito ao consumidor. Felizmente, é também um exemplo de como o Poder Judiciário tem atuado como um escudo protetor, garantindo que o seu direito de ir e vir, uma vez pago, seja respeitado.