Multiparentalidade: Como a Constituição Acolhe a Pluralidade de Vínculos Afetivos

Por gerações, a lógica foi simples: uma criança, um pai, uma mãe. Qualquer configuração que fugisse a essa regra era vista como uma anomalia, um problema a ser resolvido pela lei, que invariavelmente obrigava uma escolha. Mas e quando a vida real é mais complexa e rica que a ficção jurídica? E se uma criança for criada com o mesmo amor, cuidado e presença por um pai biológico e por um padrasto? Ela deveria ser forçada a escolher? O Supremo Tribunal Federal (STF) respondeu a essa pergunta com uma decisão histórica que revolucionou o conceito de família no Brasil: a multiparentalidade. Ela é o reconhecimento oficial de que o amor não se divide, se soma, permitindo que uma pessoa tenha mais de um pai e/ou mais de uma mãe em seu registro civil, com todos os direitos e deveres que isso implica.

A Revolução do STF: Entenda a Decisão que Mudou o Conceito de Família

O marco dessa revolução é o julgamento do Recurso Extraordinário 898.060, com repercussão geral (Tema 622), em 2016. Na ocasião, o STF firmou a tese de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Em termos simples, a Corte máxima do país decretou que o afeto e a biologia podem coexistir oficialmente. Não há hierarquia entre eles. Se uma pessoa possui um pai que a criou (socioafetivo) e um pai que a gerou (biológico), e ambos os vínculos são relevantes para sua vida, ambos podem constar em sua certidão de nascimento. A decisão é um triunfo dos princípios do melhor interesse da criança e da dignidade humana, pois prioriza a proteção integral de todos os laços de cuidado que moldam a identidade de um indivíduo.

Afeto + Biologia = Soma de Direitos, Não Divisão

Um dos maiores temores que a multiparentalidade gerava era a ideia de que os direitos e deveres seriam “pulverizados” ou divididos. A realidade jurídica é o oposto. O reconhecimento de múltiplos pais ou mães não dilui as responsabilidades; ele as multiplica e solidifica. Isso significa que a criança ou o filho adulto passa a ter direitos em relação a todas as suas linhas parentais e, ao mesmo tempo, todos os pais e mães passam a ter, perante o filho, o pacote completo de deveres parentais. Não se trata de “meia-pensão” de um e “meia-pensão” de outro, ou de herdar apenas uma fração de cada um. A filiação é reconhecida em sua plenitude em todas as frentes, criando uma rede de proteção jurídica e afetiva muito mais robusta para o filho.

Efeitos Práticos da Multiparentalidade: Pensão, Herança e Guarda

As consequências práticas são diretas e profundas, impactando as áreas mais sensíveis do Direito de Família:

  • Pensão Alimentícia: Todos os pais/mães registrados têm o dever de contribuir para o sustento do filho, na proporção de suas possibilidades. A necessidade do filho pode ser suprida por uma soma de esforços de todos os parentes.
  • Herança: Este é um ponto crucial. O filho com múltiplos pais terá direito a herdar de todos eles. Seus avós, tios e outros parentes também serão os de todas as linhagens (biológica e afetiva). Da mesma forma, caso o filho faleça antes dos pais, todos os pais registrados serão seus herdeiros.
  • Guarda e Convivência: As decisões sobre a vida da criança devem ser tomadas em conjunto, e o direito de convivência é garantido com todos os núcleos familiares. A complexidade aumenta, exigindo diálogo e maturidade, mas o benefício para a criança de ter sua realidade afetiva integralmente respeitada é o foco principal.
  • Acrescentar o sobrenome: O filho tem o direito de acrescentar ao seu nome o sobrenome das novas famílias reconhecidas, fortalecendo seu senso de pertencimento.

Como Funciona o Reconhecimento na Prática?

Existem dois caminhos principais para oficializar a multiparentalidade. O primeiro, mais simples e rápido, é o extrajudicial. Se o filho for maior de 12 anos e houver concordância entre todos os envolvidos (o filho, os pais biológicos e os pais afetivos), o reconhecimento pode ser feito diretamente no Cartório de Registro Civil, conforme o Provimento nº 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O segundo caminho é o judicial. Quando não há consenso, ou quando o filho é menor de 12 anos, é necessário ingressar com uma ação declaratória de multiparentalidade. O juiz analisará as provas do vínculo afetivo (fotos, testemunhas, registros escolares) e do vínculo biológico para tomar a decisão, sempre com base no que será melhor para a criança. A multiparentalidade não é uma invenção jurídica; é a lei finalmente se curvando à complexa e bela realidade das relações humanas.

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