Herança Digital no Divórcio: Como Fica a Partilha de Contas, Perfis em Redes Sociais e Milhas Aéreas?

Pense por um instante em todo o patrimônio que você construiu e que não pode ser tocado: suas fotos e vídeos armazenados na nuvem, sua biblioteca de músicas e filmes em serviços de streaming, seus seguidores em uma rede social, os pontos acumulados no cartão de crédito, suas milhas aéreas, seus criptoativos. Vivemos uma era em que boa parte de nossa vida, de nossas memórias e de nossos bens é composta por logins, senhas e dados. Com o divórcio, uma fronteira jurídica nova e cinzenta se abre: esse patrimônio digital tem valor? Ele pode ser dividido? A resposta é sim, mas a partilha desses bens intangíveis é um dos maiores e mais modernos desafios do Direito de Família.
Podemos dividir os bens digitais em duas categorias principais. A primeira é a dos ativos com valor econômico claro e direto. Aqui se encaixam as milhas aéreas e os pontos de programas de fidelidade. A jurisprudência entende que, se esses pontos foram acumulados durante o casamento, a partir de despesas pagas com recursos comuns (como a fatura do cartão de crédito), eles são considerados patrimônio do casal e devem ser partilhados. O desafio é prático: como os programas de fidelidade geralmente proíbem a transferência de pontos entre titulares, a solução mais comum é calcular o valor de mercado daquelas milhas (o preço que teriam se fossem vendidas) e compensar o outro cônjuge com dinheiro ou com outros bens. As criptomoedas, como já vimos em outro artigo, também entram nesta categoria de bens com valor econômico e são partilháveis.
A segunda categoria, muito mais complexa, é a dos ativos cujo valor é subjetivo ou ligado à identidade pessoal, como os perfis em redes sociais. Um perfil pessoal comum no Instagram ou Facebook, em regra, é considerado um bem de natureza personalíssima, intrinsecamente ligado à identidade e à liberdade de expressão de seu titular, não sendo, portanto, partilhável. A situação muda drasticamente, no entanto, se esse perfil foi criado ou cresceu exponencialmente durante o casamento e se tornou uma fonte de renda (um perfil comercial, de um influenciador digital, por exemplo). Neste caso, embora o perfil em si possa permanecer com o titular, os lucros auferidos e o valor econômico da marca e da audiência construídas durante o matrimônio podem, sim, ser objeto de partilha, de forma similar à apuração de haveres de uma empresa tradicional. É um tema novo, que exige perícia para avaliar o valor do “negócio digital”.
E quanto aos acervos digitais de valor afetivo, como as coleções de fotos e vídeos da família armazenadas em serviços como o iCloud ou Google Photos? Embora não tenham valor de mercado, eles possuem um valor sentimental incalculável. O entendimento é que o direito de acesso a esse acervo de memórias pertence a ambos os cônjuges. O ideal é que o titular da conta compartilhe o acesso com o ex-parceiro ou forneça uma cópia completa de todos os arquivos. Caso haja uma recusa imotivada, é possível ingressar com uma medida judicial para obrigar o compartilhamento, garantindo que ninguém seja privado da história de sua própria família. Já as bibliotecas de bens licenciados, como músicas e filmes, são mais difíceis de partilhar, pois os termos de serviço das plataformas geralmente as definem como licenças de uso pessoal e intransferíveis.
A grande questão de fundo é que ainda não existe uma “Lei da Partilha Digital” no Brasil. A Justiça precisa, então, aplicar por analogia as regras do Código Civil a essa nova realidade, muitas vezes colidindo com os termos de serviço privados impostos pelas grandes empresas de tecnologia (as Big Techs). O que fica claro é que o conceito de patrimônio se expandiu. A melhor solução é sempre o acordo, detalhando no divórcio quem ficará com cada ativo digital e como o acesso será garantido. Na falta de consenso, a disputa exigirá advogados atualizados e dispostos a argumentar de forma criativa neste território jurídico ainda em construção, provando que um login e senha podem valer tanto quanto um bem físico.