Fixação de Residência na Guarda Compartilhada: Mitos e Verdades

Um dos mitos mais persistentes e geradores de confusão na guarda compartilhada é a ideia de que, nesta modalidade, a criança não tem um lar fixo, vivendo com uma “mochila nas costas” em um eterno estado de transição entre duas casas. Essa imagem, além de assustadora para os pais, é juridicamente e psicologicamente incorreta. A guarda compartilhada equilibra o tempo de convivência e impõe decisões conjuntas, mas isso não elimina a necessidade de um ponto de referência para a criança. Entender a diferença entre convivência e residência é crucial para desmistificar o tema e construir uma rotina que ofereça a estabilidade tão necessária ao desenvolvimento infantil.
A grande verdade é que, mesmo na guarda compartilhada, é estabelecida uma residência de referência ou lar base para a criança. Essa definição não diminui a importância da casa do outro genitor, que também é um lar para o filho, mas cumpre funções práticas e jurídicas indispensáveis. É neste endereço de referência que a criança será matriculada na escola, registrada no posto de saúde e terá seu ponto de partida para atividades sociais. A fixação da residência de referência serve para organizar a vida burocrática da criança e, mais importante, para criar um senso de pertencimento e estabilidade geográfica. A criança precisa saber qual é “a sua rua”, onde seus principais amigos moram, qual é o caminho que faz para a escola. Essa previsibilidade geográfica é um pilar para a segurança emocional.
A escolha dessa residência de referência deve ser pautada exclusivamente pelo melhor interesse da criança, e não pela conveniência ou desejo dos pais. Diversos fatores são ponderados para essa decisão, seja em acordo entre os genitores ou por determinação judicial:
- Proximidade da Escola: Manter a criança na mesma escola ou em uma próxima à residência de um dos genitores é um fator de peso para evitar longos deslocamentos e preservar seu círculo social.
- Adaptação e Vínculos: Qual ambiente já representa o principal núcleo de vida da criança? Onde ela já possui uma rotina estabelecida e laços comunitários mais fortes?
- Disponibilidade dos Pais: A residência daquele genitor que, por sua rotina de trabalho ou estrutura de apoio (como a presença de avós), oferece maior suporte para as demandas diárias da criança, pode ser escolhida como a base.
É fundamental quebrar outro mito: o genitor que detém a residência de referência não possui “mais direitos” ou “mais poder” na guarda compartilhada. Ambos os genitores continuam sendo igualmente responsáveis pelas decisões sobre a vida do filho. A casa-base é um arranjo prático, não uma hierarquia de poder. O outro genitor não é um “visitante”; sua casa é igualmente o lar da criança durante os períodos de convivência. A palavra “visita”, inclusive, é cada vez mais evitada em contextos de guarda compartilhada, sendo substituída por “período de convivência”, que reflete com mais precisão a natureza da relação.
O maior desafio, e onde reside a verdade da funcionalidade, é a cooperação para transformar ambas as casas em lares verdadeiros e consistentes para a criança. Isso significa que regras essenciais, rotinas de sono e alimentação, e até mesmo a disponibilidade de itens básicos (roupas, brinquedos, material de higiene) devem existir em ambos os lugares. O objetivo é minimizar a sensação de “mala pronta”. A criança não deve se sentir como um hóspede em nenhuma das casas. O sucesso do sistema de dupla residência, ancorado em um lar de referência, depende diretamente da capacidade dos pais de dialogarem e criarem ambientes espelhados nos seus valores e regras fundamentais.
Portanto, a fixação de uma residência de referência na guarda compartilhada não é um retrocesso à guarda unilateral, mas sim uma ferramenta inteligente de organização e estabilidade. Ela concilia a responsabilidade conjunta e a convivência equilibrada com a necessidade humana e infantil de ter um “porto seguro”, um ponto de partida e de chegada. Ao compreender e aplicar corretamente esse conceito, os pais substituem o fantasma da “criança da mochila” pela realidade de uma criança com dois lares amorosos e uma base segura para crescer.