Famílias Sem Casal: A Proteção da Lei para Famílias Monoparentais e Anaparentais

Quando pensamos em “família”, a imagem que tradicionalmente nos vem à mente é a do casal com seus filhos. No entanto, a realidade brasileira é muito mais rica e diversa. Milhões de lares são chefiados por mães ou pais solos, e muitos outros são formados por arranjos baseados no afeto entre parentes, como duas irmãs que vivem juntas ou uma avó que cria seus netos. O Direito brasileiro, em sintonia com a Constituição, tem evoluído para reconhecer e proteger essa pluralidade. A Constituição Federal protege expressamente a família monoparental, e a jurisprudência, com base nos princípios da afetividade e da solidariedade, estendeu essa proteção também às famílias anaparentais, demonstrando que o elemento que define uma família não é a presença de um casal, mas sim a existência de um vínculo estável de cuidado e assistência mútua.
Mãe Solo, Pai Solo: O Reconhecimento Expresso da Família Monoparental
A Constituição de 1988 foi um marco ao romper com a visão de que a família só poderia se originar do casamento. Em seu artigo 226, § 4º, ela reconhece de forma explícita a família monoparental como entidade familiar, definindo-a como “a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Esse reconhecimento conferiu status de família e dignidade a milhões de lares chefiados por mães ou pais que criam seus filhos sozinhos, seja em decorrência de viuvez, divórcio, adoção individual ou produção independente. Com isso, essas famílias passaram a ter acesso a todos os direitos e proteções garantidos pelo Estado, como a proteção do bem de família, benefícios previdenciários e a legitimidade para figurar em programas sociais.
E quando a Família é Formada por Irmãos? A Descoberta da Família “Anaparental”
E os arranjos familiares onde não existe uma figura parental? Duas irmãs idosas que viveram a vida inteira juntas, uma cuidando da outra. Um tio que cria seus sobrinhos após a morte dos pais. Esses núcleos, baseados no afeto e na solidariedade, também são famílias. A doutrina e a jurisprudência deram a eles o nome de família anaparental (do grego ana = sem; ou seja, sem pais). Embora não haja menção expressa na Constituição, os tribunais, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm reconhecido a existência e a proteção a esses arranjos, aplicando por analogia a proteção destinada às outras entidades familiares.
Direitos Reconhecidos: A Proteção do “Bem de Família” e Outras Conquistas
A conquista mais emblemática para as famílias anaparentais foi o reconhecimento do direito à impenhorabilidade do bem de família. A Lei nº 8.009/90 protege o único imóvel residencial de uma família contra a penhora por dívidas. Por muito tempo, entendeu-se que essa proteção só valia para casais ou famílias monoparentais. O STJ, em uma interpretação humanizadora, mudou esse entendimento. Em decisões marcantes, o Tribunal decidiu que um imóvel onde residem, por exemplo, duas irmãs solteiras, também é considerado um bem de família e, portanto, impenhorável. Essa decisão reconhece que o que a lei busca proteger não é um modelo específico de família, mas sim o direito à moradia digna da entidade familiar, qualquer que seja sua configuração.
O Vínculo de Cuidado como Elemento Central da Família do Século XXI
O reconhecimento e a proteção das famílias monoparentais e anaparentais consolidam uma ideia central do Direito de Família moderno: o elemento que verdadeiramente constitui uma família, aos olhos da lei, é a existência de um vínculo estável, público e duradouro, fundado na afetividade, na solidariedade e no cuidado mútuo, com o objetivo de garantir o desenvolvimento e o bem-estar de seus membros. A presença de um casal, a existência de laços hierárquicos de ascendência ou descendência, ou a origem biológica dos vínculos tornaram-se secundários. O que importa é a função que aquele núcleo exerce: ser um espaço de acolhimento e proteção. É a vitória da realidade da vida sobre a rigidez das formas.