Famílias Poliafetivas: Desafios e Possibilidades de Reconhecimento à Luz dos Princípios Constitucionais

Uma união formada por três ou mais pessoas, que se baseia no consentimento, na lealdade e no afeto mútuo. Para muitos, um tabu; para outros, uma realidade familiar. A poliafetividade, ou poliamor, representa hoje um dos maiores desafios para o Direito de Família brasileiro, testando os limites dos conceitos de casamento, união estável e do próprio princípio da monogamia. Enquanto a sociedade debate e explora novas formas de se relacionar, a Justiça se vê diante de uma encruzilhada: deve ignorar esses arranjos, deixando seus membros desprotegidos, ou deve adaptar-se para reconhecer e tutelar direitos? A resposta ainda está em construção, em um embate direto entre a tradição jurídica e os princípios constitucionais da liberdade e da dignidade.
O que é Poliafetividade e por que Ela Desafia o Direito Tradicional?
É fundamental, primeiro, diferenciar a poliafetividade da infidelidade. Enquanto a infidelidade é uma quebra de um pacto de exclusividade, a poliafetividade é um arranjo familiar ou afetivo no qual três ou mais pessoas se relacionam de forma simultânea, com o conhecimento e o consentimento de todos. A base é a transparência e a busca por um projeto de vida em comum. O desafio para o Direito é que todo o sistema de família brasileiro foi historicamente construído sobre um pilar monogâmico. O casamento e a união estável, por definição legal e cultural, preveem a união entre duas pessoas. Um “trisal” (união de três pessoas), por exemplo, não se encaixa nesse modelo, gerando um vácuo jurídico sobre questões como partilha de bens, herança, pensão e direitos previdenciários.
A Barreira do CNJ e a Posição Oficial da Justiça
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução nº 175, colocou um freio nas tentativas de formalização dessas uniões. A decisão proibiu expressamente que os cartórios de todo o Brasil lavrassem escrituras públicas de uniões estáveis poliafetivas. O argumento central é que o princípio da monogamia, embora não seja uma cláusula pétrea, ainda é um princípio estruturante do ordenamento jurídico familiar brasileiro, e que o reconhecimento desses arranjos dependeria de uma mudança na lei pelo Congresso Nacional, e não de uma interpretação extensiva por parte do Judiciário ou dos cartórios. Essa posição oficial criou uma barreira formal, mas não encerrou o debate nem eliminou a existência e as demandas dessas famílias.
A Defesa do Reconhecimento: Liberdade, Afeto e Dignidade em Jogo
Do outro lado da trincheira, juristas de vanguarda, como a Ministra do STJ Nancy Andrighi e a advogada Maria Berenice Dias, defendem que a negação de qualquer direito a essas famílias é inconstitucional. Os argumentos são poderosos e se baseiam nos mesmos princípios que modernizaram o Direito de Família:
- Princípio da Autonomia Privada e Liberdade: Se os indivíduos são livres para escolher seus projetos de vida, por que o Estado imporia um modelo único de família? A liberdade de se organizar afetivamente, desde que não prejudique terceiros, deveria ser protegida.
- Princípio da Afetividade: Se a família contemporânea se define pelo afeto e pelo cuidado mútuo, e uma relação poliafetiva possui esses elementos de forma genuína, negar sua existência seria contraditório.
- Princípio da Dignidade Humana: Deixar essas famílias completamente à margem da proteção jurídica, negando-lhes direitos patrimoniais e existenciais básicos, é tratá-las como cidadãos de segunda classe, o que fere a dignidade de seus membros.
Direitos Possíveis Hoje: Contratos e a Análise Caso a Caso
Diante do vácuo e da proibição formal, qual a saída para as famílias poliafetivas hoje? A solução tem sido buscar proteções por vias alternativas. Uma delas é a celebração de “contratos de namoro qualificado” ou “contratos de afeto”, documentos particulares que, embora não configurem uma união estável, podem estabelecer regras claras sobre a divisão de bens adquiridos por esforço comum em caso de separação. Além disso, os tribunais têm analisado casos concretos e, sem reconhecer a “família poliafetiva” em si, acabam por conceder direitos com base no Direito das Obrigações, tratando a relação como uma “sociedade de fato”. Já houve decisões concedendo divisão de patrimônio e até mesmo pensão por morte previdenciária rateada entre os membros. É a Justiça tentando encontrar soluções pontuais para proteger a dignidade e evitar o enriquecimento ilícito, enquanto a sociedade e o legislador não definem o futuro desses novos arranjos familiares.