Constelação Familiar no Judiciário: Solução Humanizada ou Prática Inconstitucional?

Em busca de soluções mais rápidas e menos conflituosas para os complexos dramas das Varas de Família, alguns setores do Judiciário brasileiro passaram a experimentar e incentivar, nos últimos anos, o uso de um método terapêutico alternativo conhecido como “Constelação Familiar”. Criada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, a prática propõe identificar e resolver conflitos familiares a partir das “ordens do amor” e de emaranhados em gerações passadas. A promessa de pacificação e cura atraiu juízes e mediadores. Contudo, essa inserção gerou uma onda de críticas contundentes de conselhos profissionais, juristas e da comunidade científica, acendendo um debate fervoroso: a Constelação Familiar é uma ferramenta legítima de humanização da Justiça ou uma prática pseudocientífica e inconstitucional que viola direitos fundamentais?
O que é a Constelação Familiar e Como Ela Chegou às Varas de Família?
A Constelação Familiar é uma abordagem terapêutica que postula que os problemas individuais e familiares são reflexos de desordens nos sistemas de parentesco, regidos por três leis: pertencimento, ordem e equilíbrio. Nas sessões, pessoas (ou bonecos) são usadas para representar membros da família do “constelado”, e o terapeuta busca, através de um “campo morfogenético”, revelar as dinâmicas ocultas e restaurar a ordem. A prática chegou ao Judiciário por meio de juízes que, inspirados por recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o uso de métodos autocompositivos, viram nela uma forma de resolver a raiz emocional dos conflitos, para além da disputa jurídica formal. O objetivo declarado era reduzir a litigiosidade e promover reconciliações mais profundas.
Os Argumentos a Favor: A Busca por uma “Justiça Sistêmica”
Os defensores do uso da Constelação Familiar no ambiente forense argumentam que a Justiça tradicional é fria e limitada, tratando apenas dos sintomas (a partilha de bens, a guarda) e não das causas do conflito. Para eles, a abordagem “sistêmica” permitiria que as partes compreendessem as lealdades invisíveis e os traumas transgeracionais que alimentam a briga. A promessa é a de uma “pacificação social” mais efetiva, onde as partes, ao “verem” a origem de sua dor, poderiam chegar a acordos mais conscientes e duradouros, evitando novos processos no futuro. Em tese, seria um caminho para uma justiça mais humana e empática.
As Duras Críticas: Falta de Ciência e Violação de Direitos Fundamentais
A reação contrária, no entanto, é robusta e baseada em múltiplos argumentos graves. O primeiro e mais forte é a total ausência de comprovação científica. A Constelação Familiar não é reconhecida como prática psicológica ou científica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que a classifica como pseudociência. Além disso, as críticas apontam para violações diretas a princípios constitucionais:
- Violação da Laicidade do Estado: A prática é permeada por conceitos místicos e espirituais (“campo morfogenético”, “alma familiar”), o que é incompatível com um Estado laico.
- Risco de Revimização: Em casos de violência doméstica ou abuso, a dinâmica da constelação pode pressionar a vítima a “perdoar” ou “compreender” seu agressor para “restaurar a ordem do sistema”, o que configura uma grave revitimização.
- Violação do Devido Processo Legal: A participação, muitas vezes, é induzida pelo juiz, gerando constrangimento e ferindo a imparcialidade. O resultado da “sessão” pode influenciar a decisão judicial sem passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa.
- Reforço de Estereótipos: A teoria de Hellinger é criticada por reforçar papéis hierárquicos e patriarcais, o que vai na contramão de todo o avanço do Direito de Família em direção à igualdade de gênero.
A Posição dos Conselhos e da Justiça: Por que a Prática Está Sendo Reavaliada?
Diante da avalanche de críticas, a maré está virando. O Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Nacional de Direitos Humanos já emitiram notas e recomendações contrárias ao uso da Constelação Familiar no Judiciário. Diversos Tribunais de Justiça estaduais, como os de São Paulo e do Rio Grande do Sul, já estão reavaliando a prática, com muitos juízes e corregedorias orientando pela sua não utilização em processos judiciais. O entendimento que ganha força é que, embora as pessoas sejam livres para buscar qualquer terapia que desejem no âmbito privado, o Poder Judiciário, como instituição do Estado, não pode endossar ou utilizar métodos que não tenham base científica e que apresentem sérios riscos à dignidade e aos direitos fundamentais dos cidadãos que buscam sua proteção.