
A cena é comum: o trabalhador retorna ao serviço após uma ausência por motivo de saúde e apresenta um atestado médico ao RH. Surge então a dúvida: o atestado precisa conter o CID (Classificação Internacional de Doenças)? O funcionário é obrigado a revelar seu diagnóstico? A empresa pode recusar o documento ou exigir essa informação? Essa é uma questão delicada que frequentemente gera atritos, pois coloca em conflito o direito fundamental do trabalhador à privacidade e ao sigilo de suas informações de saúde com as necessidades administrativas e, por vezes, a desconfiança do empregador. Entender claramente o que a legislação e a ética médica determinam sobre o CID no atestado é crucial para evitar conflitos desnecessários e proteger os direitos de ambas as partes.
A posição dos órgãos reguladores da medicina é clara e visa proteger o paciente. O Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução CFM nº 1.658/2002 (atualizada pela Resolução nº 1.851/2008), estabelece que a inclusão do diagnóstico codificado (CID) em atestados médicos só pode ocorrer mediante autorização expressa do paciente. A regra geral é o sigilo da relação médico-paciente. O médico não pode ser obrigado ou coagido, seja pelo paciente ou pelo empregador, a incluir o CID se não houver consentimento. As únicas exceções previstas são situações de justa causa (que não se aplicam ao atestado comum para abono de faltas) ou o cumprimento de dever legal (situações muito específicas, como notificações compulsórias de certas doenças, que não se confundem com a finalidade do atestado de afastamento). Portanto, do ponto de vista médico-ético, o CID não é obrigatório no atestado.
O que a empresa pode, então, exigir para validar um atestado médico e abonar a falta correspondente? A jurisprudência trabalhista e o bom senso indicam que um atestado é considerado válido se contiver elementos essenciais que permitam sua verificação e comprovem a necessidade do afastamento, tais como:
- Identificação clara do trabalhador.
- Data e hora (ou período) do atendimento.
- Tempo de repouso recomendado pelo profissional de saúde (necessário para o abono).
- Identificação do profissional ou serviço de saúde: Nome legível do médico, número de inscrição no CRM (Conselho Regional de Medicina), e preferencialmente carimbo ou emissão em papel timbrado da clínica/hospital. Notavelmente, o CID não figura entre esses requisitos essenciais para a validação do atestado com a finalidade de justificar a ausência ao trabalho. A informação primordial para a empresa é o período de afastamento recomendado.
Apesar disso, algumas empresas ainda insistem na exigência do CID, alegando necessidade para controle interno, estatísticas de saúde, alimentação do PCMSO ou para verificar a veracidade do afastamento. Essa exigência, contudo, é amplamente considerada ilegal e abusiva pela Justiça do Trabalho. Ao exigir o CID sem autorização do empregado, a empresa viola o direito à intimidade e o sigilo médico-paciente. Recusar-se a aceitar um atestado que contenha todos os elementos essenciais de validade, apenas pela ausência do CID, configura ato ilícito. Isso pode levar a ações trabalhistas pleiteando o pagamento dos dias indevidamente descontados e, inclusive, indenização por danos morais. O que a empresa PODE e DEVE fazer se houver suspeita fundada de fraude (rasuras grosseiras, CRM inválido, médico inexistente)? Nesses casos, pode-se solicitar esclarecimentos adicionais ou, preferencialmente, encaminhar o trabalhador para avaliação pelo médico do trabalho da própria empresa. Este profissional, sim, poderá ter acesso ao diagnóstico (respeitando o sigilo), avaliar a condição clínica e emitir seu parecer sobre a aptidão ou necessidade de afastamento, subsidiando a decisão administrativa da empresa.
É fundamental fazer uma distinção clara: uma coisa é o atestado apresentado ao RH para fins administrativos (abono de falta), outra é a informação gerenciada pelo SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho). O Médico do Trabalho da empresa PODE (e muitas vezes precisa) ter acesso ao CID, seja com consentimento do trabalhador ou pela necessidade de avaliar a capacidade laboral, verificar possível nexo causal com o trabalho, ou gerenciar o PCMSO. Contudo, esse profissional está eticamente e legalmente obrigado a manter o sigilo dessa informação, não a repassando para o RH ou gestores, exceto no formato de conclusão (apto/inapto, com ou sem restrições). O RH e os gestores diretos NÃO devem ter acesso ao CID, pois para suas funções basta a informação sobre o período de afastamento. A LGPD reforça essa necessidade de minimização, tratando o dado de saúde como sensível e restringindo seu acesso ao estritamente necessário para a finalidade.
Portanto, a regra sobre o CID no atestado é clara e visa proteger a privacidade do trabalhador. Trabalhador: você não é obrigado a autorizar a inclusão do CID no atestado que será entregue ao RH ou à sua chefia. Seu direito ao abono da falta não pode ser condicionado a isso se o atestado contiver os demais dados essenciais. Caso sofra pressão ou tenha o atestado recusado indevidamente por esse motivo, formalize sua reclamação e busque apoio no seu sindicato ou orientação jurídica. Empresa: revise seus procedimentos internos. Instrua o RH e os gestores a NÃO exigirem o CID como requisito para aceitação de atestados. Em caso de dúvidas sobre a condição de saúde ou aptidão do empregado, o caminho correto é o encaminhamento para avaliação pelo médico do trabalho, que garantirá o sigilo profissional. O respeito a essa norma evita litígios, protege a privacidade dos colaboradores e demonstra uma gestão ética e legalmente responsável.