“Cancelei meu Ex”: A Cultura do Cancelamento e os Limites da Liberdade de Expressão no Divórcio

A era digital trouxe um novo e perigoso campo de batalha para os conflitos familiares: as redes sociais. Um término, uma traição ou uma disputa de divórcio podem sair da esfera privada e se transformar em um espetáculo público, com posts, “exposeds” e “threads” que visam destruir a reputação do ex-parceiro. Esse fenômeno, que se apropria da lógica da “cultura do cancelamento”, transforma a dor pessoal em uma arma de destruição em massa da imagem do outro. Diante disso, surge um questionamento jurídico fundamental: até que ponto a liberdade de expressão protege quem expõe publicamente as intimidades de uma relação desfeita? A resposta é clara: embora a liberdade de expressão seja um direito sagrado, ela não é um escudo para a prática de atos ilícitos, e a exposição vexatória e humilhante de um ex-parceiro na internet pode configurar abuso de direito e gerar graves consequências cíveis e criminais.

Quando a Briga de Família Vai para a Internet: A Exposição como Arma

O que leva uma pessoa a “cancelar” um ex-parceiro online? Muitas vezes, é um sentimento de injustiça, dor e a necessidade de ser ouvido. A pessoa se sente lesada e busca, na opinião pública, uma validação para o seu sofrimento e uma punição para o outro. O problema é que essa “justiça pelas próprias mãos” digital atropela direitos fundamentais da pessoa exposta. A exposição massiva de conversas privadas, de detalhes íntimos ou de acusações (sejam elas verdadeiras ou não) viola diretamente o direito à privacidade, à honra e à imagem, todos protegidos pela Constituição no mesmo patamar da liberdade de expressão. Nenhum direito é absoluto, e o exercício de um não pode servir para aniquilar o outro.

Liberdade de Expressão vs. Direito à Honra: Onde a Lei Traça a Linha?

A linha divisória traçada pela lei e pela Justiça está no abuso de direito. O artigo 187 do Código Civil define que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Traduzindo para o nosso contexto: usar sua liberdade de expressão não com o fim de informar ou debater, mas com o propósito principal de humilhar, execrar publicamente e destruir a vida pessoal e profissional de alguém, é um exercício abusivo desse direito. Publicar uma opinião sobre um fato é diferente de vazar fotos íntimas ou expor o endereço e o telefone do ex-parceiro. O primeiro é liberdade de expressão; o segundo é ato ilícito.

As Consequências Jurídicas do “Cancelamento”: Danos Morais e Crimes

Quem decide usar a internet para “cancelar” um ex-parceiro precisa estar ciente das duras consequências legais que pode enfrentar. A pessoa exposta pode buscar reparação em duas esferas:

  1. Esfera Cível: Através de uma ação de indenização por danos morais, buscando uma compensação financeira pela dor, humilhação e constrangimento sofridos. Se a exposição tiver causado a perda de um emprego ou de contratos, a indenização pode incluir também os danos materiais. O juiz pode, ainda, determinar liminarmente a remoção imediata do conteúdo ofensivo, sob pena de multa diária.
  2. Esfera Criminal: Dependendo do conteúdo das publicações, a conduta pode configurar crimes contra a honra: Injúria (ofender a dignidade de alguém), Calúnia (imputar falsamente um crime a alguém) ou Difamação (imputar um fato ofensivo à reputação de alguém). Cada um desses crimes prevê penas que podem incluir multas e detenção.

Pense Duas Vezes: O Efeito Bumerangue da Exposição

Além das consequências legais, a exposição pública de um conflito familiar raramente traz os resultados esperados. Ela pode até gerar um apoio momentâneo, mas também alimenta um ciclo de ódio, dificulta qualquer possibilidade de acordo amigável, prejudica imensamente os filhos (que assistem à execração pública de seus pais) e, no final, pode se voltar contra quem começou. A imagem de pessoa “barraqueira” ou “vingativa” pode prejudicar o expositor em futuras relações e até profissionalmente. O caminho para a resolução de conflitos familiares, por mais dolorosos que sejam, continua sendo o da privacidade, do diálogo (quando possível), da mediação e, em último caso, da busca pela Justiça através dos meios legais e civilizados, e não em uma arena pública de linchamento virtual.

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