Bebê de Proveta e a Lei: Os Desafios Éticos e Jurídicos da Reprodução Assistida no Brasil

A ciência tem proporcionado verdadeiros milagres para casais e pessoas com dificuldades de engravidar. As técnicas de reprodução humana assistida (RHA), como a fertilização in vitro (FIV), abriram um universo de possibilidades para a realização do sonho da parentalidade. Contudo, essa tecnologia avança em uma velocidade muito superior à do Direito. No Brasil, não existe uma lei específica sobre o tema, o que cria um cenário complexo e repleto de desafios éticos e jurídicos. Na ausência de legislação, as regras são ditadas principalmente por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), e os conflitos mais espinhosos, como herança de embriões e “barriga solidária”, acabam sendo decididos caso a caso pelos tribunais, testando os limites da autonomia, do afeto e da dignidade.
Quem Define as Regras? O Papel Crucial do Conselho Federal de Medicina
Diante do vácuo legislativo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) assumiu a responsabilidade de estabelecer as normas éticas para a prática da RHA no Brasil, por meio de resoluções que são atualizadas periodicamente (a mais recente é a nº 2.320/2022). Essas resoluções funcionam como a “lei” para as clínicas e os médicos, definindo quem pode acessar as técnicas, como os embriões devem ser tratados e quais procedimentos são permitidos. Elas permitem, por exemplo, o acesso a técnicas por casais homoafetivos e pessoas solteiras (produção independente), um grande avanço. Contudo, por não serem leis no sentido estrito, suas determinações podem ser questionadas na Justiça, gerando insegurança jurídica.
Planejar um Filho Após a Morte: A Complexa Inseminação Post Mortem
Uma das questões mais polêmicas é a inseminação post mortem: o uso do material genético (sêmen ou óvulos) de uma pessoa já falecida para gerar uma criança. O CFM permite o procedimento, mas com uma condição rigorosa: é necessária uma autorização prévia e expressa da pessoa falecida, deixada por escrito, para que seu material genético seja utilizado após a sua morte. Essa regra visa proteger a autonomia da pessoa, impedindo que uma decisão tão profunda seja tomada por terceiros. A questão, porém, transborda para o Direito de Família e Sucessões. O filho nascido dessa técnica terá direito à herança do pai ou mãe pré-morto? O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que sim, desde que a autorização tenha sido clara, equiparando seus direitos aos dos demais filhos.
“Barriga Solidária”: O que a Lei Permite Sobre a Cessão Temporária do Útero?
O termo popular “barriga de aluguel” é inadequado, pois a prática é proibida no Brasil se tiver caráter comercial. O que a resolução do CFM permite é a cessão temporária do útero, também chamada de “gestação por substituição” ou “barriga solidária”. As regras são estritas:
- Caráter Altruísta: Não pode haver nenhum tipo de pagamento ou recompensa pela gestação.
- Parentesco: A cedente do útero deve ser parente de até quarto grau de um dos parceiros (mãe, avó, irmã, tia, sobrinha ou prima). Em casos excepcionais, com autorização do CRM, pode ser outra pessoa.
- Laços de Filiação: A filiação da criança é estabelecida com o casal ou pessoa que forneceu o material genético e teve a intenção de ser pai/mãe, e não com a mulher que gestou. O registro de nascimento é feito diretamente em nome dos pais intencionais.
Meu Filho Terá Direito de Conhecer o Doador? Genética vs. Afeto
Muitas técnicas de RHA dependem da doação de gametas (óvulos ou sêmen). A regra geral no Brasil, estabelecida pelo CFM, é o anonimato do doador. O casal receptor e a criança gerada não têm o direito de conhecer a identidade do doador, e vice-versa. O objetivo é proteger ambas as partes e enfatizar que a filiação é socioafetiva, e não meramente genética. Contudo, essa é uma regra ética, não uma lei imutável. Há um intenso debate jurídico sobre se essa norma não violaria o direito da criança à sua identidade e ao conhecimento de sua origem genética, um direito fundamental ligado à dignidade. Alguns juristas defendem que, ao atingir a maioridade, o filho deveria ter o direito de acessar essas informações, ao menos para fins de saúde. É mais uma fronteira onde o avanço da ciência nos força a repensar os limites do direito e da ética.