Atraso em Voo Internacional: A Aplicação das Convenções de Montreal e do Código de Defesa do Consumidor

Atrasos em voos internacionais trazem uma camada extra de complexidade e ansiedade. As distâncias são maiores, os custos mais elevados e as consequências de uma conexão perdida ou de uma chegada tardia podem ser devastadoras para o planejamento de uma viagem ao exterior. Uma dúvida crucial surge imediatamente: qual lei me protege? O Código de Defesa do Consumidor (CDC), conhecido por ser altamente protetivo, ou as convenções internacionais que os países assinaram, como as de Montreal e Varsóvia? Por muito tempo, essa foi uma batalha jurídica intensa, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) colocou um ponto final na questão, e entender essa decisão é vital para saber o que e como exigir seus direitos.
O Conflito de Normas: CDC vs. Convenções Internacionais
O cerne da questão estava em um aparente conflito. De um lado, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), uma norma de ordem pública no Brasil que prevê a reparação integral dos danos causados ao consumidor, sejam eles materiais ou morais. Do outro, as Convenções de Montreal e Varsóvia, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem limites (tetos) para as indenizações, especialmente em casos de extravio de bagagem e danos materiais. As companhias aéreas, naturalmente, sempre defenderam a aplicação das convenções, que limitariam sua responsabilidade financeira, enquanto os advogados dos consumidores lutavam pela aplicação do CDC, mais benéfico ao passageiro.
A Decisão do STF: Uma Solução Híbrida e seus Efeitos Práticos
Em 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 636331, com repercussão geral (Tema 210), o STF bateu o martelo. A Corte decidiu que, em voos internacionais, as Convenções de Montreal e Varsóvia prevalecem sobre o Código de Defesa do Consumidor no que diz respeito às indenizações por danos materiais, como o extravio de bagagem e o atraso na sua entrega. Isso significa que, para esses casos específicos, existem tetos indenizatórios calculados em uma moeda chamada “Direito Especial de Saque” (DES). Na prática, a indenização por uma mala perdida, por exemplo, não será baseada no valor total dos itens que estavam dentro, mas sim limitada a esse teto internacional.
O Dano Moral: O Território Sagrado do Consumidor Brasileiro
Aqui reside o ponto mais importante da decisão e a maior vitória para os passageiros. O STF foi claro ao separar as coisas: a prevalência das convenções se aplica aos danos materiais. Contudo, no que se refere à compensação por danos morais, a situação é completamente diferente. O dano moral decorrente de atraso de voo, da perda de um compromisso ou do estresse e humilhação sofridos não é tarifado nem limitado pelas convenções internacionais. Para esses casos, a proteção integral do consumidor, garantida tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código de Defesa do Consumidor, continua plenamente em vigor. Isso significa que o juiz brasileiro tem total liberdade para fixar o valor da indenização por dano moral com base na extensão do sofrimento do passageiro, sem se prender a qualquer teto internacional.
Na Prática: Como Exigir Seus Direitos em um Voo Internacional Atrasado
Quando seu voo internacional atrasar, seus direitos imediatos no aeroporto permanecem os mesmos, regidos pela Resolução 400 da ANAC. A companhia aérea ainda tem o dever de prestar assistência material completa (alimentação, comunicação, hospedagem) e oferecer opções de reacomodação ou reembolso. A grande diferença está na hora de entrar com uma ação judicial. Você pode e deve pedir a reparação por todos os danos materiais que sofreu (como noites de hotel perdidas, passeios pagos e não realizados), mas a grande força do seu pleito estará na robusta comprovação do dano moral. A angústia de estar em um país estrangeiro, a barreira do idioma, a perda daquele tour específico em Paris ou daquela reunião em Nova York são elementos poderosos para justificar um pedido de indenização significativo, que será julgado sob a ótica protetiva da lei brasileira.
Portanto, a complexidade dos voos internacionais não diminui seus direitos, apenas os especifica. Enquanto o ressarcimento por uma mala extraviada pode ser limitado, a compensação pela sua paz de espírito, seu tempo e seus planos frustrados não tem preço tabelado. O dano à sua moral, mesmo a milhares de quilômetros de casa, ainda é julgado com o olhar atento e protetor da justiça brasileira.