Análise de Projetos de Lei que Buscam Alterar as Regras da Prisão Civil por Dívida Alimentar

A prisão civil por dívida de alimentos é um dos institutos mais antigos e, ao mesmo tempo, mais controversos do Direito brasileiro. Sua existência é uma cláusula pétrea na Constituição, mas sua aplicação, eficácia e humanidade são temas de intenso e perene debate. Esse debate não ocorre apenas nos tribunais e na academia, mas também nos corredores do Congresso Nacional, onde diversos projetos de lei (PLs) são propostos para reformar, endurecer, abrandar ou até mesmo extinguir essa forma de coerção. Analisar essas propostas é perscrutar o futuro do Direito de Família e entender as tensões que moldam a legislação. O que está na pauta dos nossos parlamentares?
A Corrente do Endurecimento: Tolerância Zero com o “Devedor Profissional”
Uma vertente de projetos de lei parte do pressuposto de que o sistema atual ainda é muito brando com o devedor que age de má-fé. Esses parlamentares argumentam que é preciso criar mais mecanismos para fechar o cerco contra quem pode pagar, mas escolhe não o fazer. As propostas nessa linha geralmente buscam:
- Positivar as medidas atípicas: Incluir expressamente no Código de Processo Civil a possibilidade de suspensão da CNH, apreensão do passaporte e bloqueio de cartões de crédito como um procedimento padrão na execução de alimentos, não mais dependendo da interpretação de cada juiz.
- Aumentar o prazo da prisão: Alguns projetos sugerem a alteração do prazo máximo da prisão civil de três para seis meses, aumentando o poder de coerção.
- Criar o Cadastro Nacional de Devedores de Alimentos: Uma proposta recorrente é a criação de um cadastro público, similar a um “Serasa” específico para dívidas alimentares, que geraria restrições automáticas em diversas áreas da vida civil do devedor.
A Corrente Humanista: Foco na Mediação e em Penas Alternativas
No extremo oposto, uma outra corrente legislativa defende que a prisão é uma medida arcaica, cruel, que estigmatiza o devedor e destrói os laços familiares, além de ser ineficaz contra a pobreza. Os projetos de lei com essa visão humanista propõem uma mudança radical de paradigma:
- Abolição ou substituição da prisão: Propostas mais radicais sugerem a completa abolição da prisão civil, substituindo-a por um rol de sanções patrimoniais e restritivas de direitos. Outras, mais moderadas, propõem que o regime fechado seja a exceção, tornando a prisão domiciliar com monitoramento eletrônico a regra geral.
- Prioridade absoluta à autocomposição: Muitos desses projetos condicionam qualquer medida coercitiva à tentativa prévia e obrigatória de mediação ou conciliação, forçando as partes ao diálogo antes da escalada do conflito.
- Criação de fundos garantidores: Alguns projetos mais audaciosos sugerem a criação de um fundo garantidor de alimentos, onde o Estado adiantaria o valor da pensão para a criança em caso de inadimplência do devedor, e depois cobraria a dívida do genitor por meios próprios, sem envolver a privação de liberdade.
Propostas de Nicho: Protegendo os Mais Vulneráveis em Ambos os Lados
Entre os dois extremos, surgem propostas que buscam resolver problemas específicos e proteger grupos vulneráveis. Por exemplo, projetos de lei que visam garantir legalmente e de forma expressa o direito à prisão domiciliar para devedores que sejam os únicos responsáveis pelo cuidado de filhos menores, pessoas com deficiência ou idosos, evitando que a prisão de um gere o desamparo de outro. Na outra ponta, há projetos que buscam criar uma “presunção de impossibilidade de pagamento” para devedores inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), dificultando a decretação da prisão contra indivíduos em situação de pobreza extrema comprovada.
O Ritmo Lento do Legislativo e a Rápida Evolução da Jurisprudência
É crucial entender que o processo de aprovação de uma lei no Brasil é, por natureza, lento e sujeito a intensas negociações políticas. Envolve debates em múltiplas comissões, votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, e ainda pode sofrer vetos do Presidente da República. Por isso, muitos desses projetos tramitam por anos e acabam sendo arquivados. Na prática, enquanto o Legislativo debate em seu ritmo próprio, são as decisões dos tribunais superiores, especialmente do STJ, que moldam de forma muito mais ágil e dinâmica as regras aplicadas no dia a dia dos fóruns. A validação das medidas atípicas, por exemplo, foi uma revolução que veio da jurisprudência, e não de uma nova lei.
Os projetos de lei em tramitação no Congresso são um termômetro das angústias e dos anseios da sociedade em relação a um tema que afeta milhões de famílias. O embate entre as correntes que pregam o endurecimento e as que defendem a humanização reflete a complexidade de se equilibrar a necessidade de coerção com a proteção da dignidade e dos laços familiares. Embora o futuro da lei escrita seja incerto, o debate em si já é valioso, pois força o Brasil a reavaliar continuamente os caminhos para garantir o direito mais básico de todos: o direito de uma criança a um futuro digno.