A rotina de ir e vir do trabalho é parte do dia a dia de milhões de brasileiros. Mas o que acontece se, nesse trajeto, ocorre um acidente? Uma queda na calçada, uma colisão no trânsito, um assalto que resulta em lesão… Essa ocorrência é considerada acidente de trabalho para fins legais? Essa questão gerou muita confusão recentemente devido a idas e vindas na legislação, mas é crucial ter clareza sobre a regra atual, pois ela impacta diretamente direitos previdenciários importantes. Saber se o acidente sofrido no percurso de casa para o trabalho (e vice-versa) é ou não equiparado a acidente de trabalho pode ser a diferença entre receber um benefício comum ou um acidentário, com todas as suas vantagens.
Historicamente, a legislação brasileira sempre protegeu o trabalhador nesse percurso. O Artigo 21, inciso IV, alínea ‘d’, da Lei nº 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social) era claro ao equiparar a acidente do trabalho, para fins previdenciários, o acidente sofrido pelo segurado, ainda que fora do local e horário de trabalho, “no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”. Essa proteção considerava que o deslocamento era uma extensão necessária da relação de emprego. Contudo, em novembro de 2019, a Medida Provisória nº 905, que instituiu o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, revogou expressamente essa alínea, gerando um intenso debate e insegurança jurídica. A intenção era desonerar as empresas, retirando a equiparação.
Aqui está o ponto fundamental que muitos ainda desconhecem: a Medida Provisória nº 905/2019 perdeu sua validade em abril de 2020, pois não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional dentro do prazo constitucional. Com a perda de validade da MP, todos os seus efeitos foram extintos, e a legislação anterior voltou a vigorar automaticamente. Isso significa que o texto original do Artigo 21, inciso IV, alínea ‘d’, da Lei 8.213/91 está novamente em pleno vigor. Portanto, atualmente (e desde abril de 2020), o acidente sofrido no trajeto entre a residência e o trabalho (e vice-versa) volta a ser SIM equiparado a acidente de trabalho para fins previdenciários. Qualquer informação contrária está desatualizada.
Quais as consequências práticas dessa equiparação para o trabalhador? São significativas e vantajosas:
- Benefício Previdenciário Acidentário (B91): Caso o acidente gere incapacidade para o trabalho por mais de 15 dias, o benefício a ser concedido pelo INSS será o auxílio por incapacidade temporária na modalidade acidentária (código B91), e não o comum (B31).
- Depósito do FGTS: Durante todo o período de recebimento do benefício B91, a empresa continua obrigada a depositar o FGTS na conta do trabalhador, o que não ocorre no benefício comum (B31).
- Estabilidade Provisória: Ao retornar ao trabalho após a alta do benefício B91, o trabalhador tem direito à garantia provisória de emprego por 12 meses, não podendo ser demitido sem justa causa nesse período (Art. 118 da Lei 8.213/91). Essa é, talvez, a consequência mais relevante no âmbito trabalhista.
E qual o papel da Medicina do Trabalho da empresa nesses casos? Embora a empresa geralmente não tenha responsabilidade civil direta pelo acidente ocorrido em via pública (a menos que tenha fornecido transporte inseguro, por exemplo), ela tem obrigações importantes decorrentes da equiparação previdenciária. O serviço de saúde ocupacional (SESMT, Médico do Trabalho) deve:
- Receber a comunicação do acidente feita pelo trabalhador.
- Orientar o trabalhador sobre a necessidade de emissão da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), que é obrigatória também para acidentes de trajeto equiparados.
- Realizar o exame de retorno ao trabalho (ASO Retorno) quando o empregado se recuperar, avaliando sua aptidão para reassumir as funções.
- Gerenciar eventuais restrições ou adaptações necessárias caso o acidente deixe sequelas. A empresa não pode se omitir; ela precisa tratar o acidente de trajeto, para fins administrativos e previdenciários, como um acidente de trabalho. É importante frisar que, para a caracterização do acidente de trajeto, o percurso deve ser o habitual e o tempo de deslocamento deve ser compatível, sem desvios significativos por interesse pessoal do trabalhador. Uma parada rápida para comprar pão na padaria do caminho geralmente não descaracteriza, mas um desvio para ir ao shopping por duas horas antes de ir para casa pode quebrar o nexo com o trabalho.
A confusão legislativa sobre o acidente de trajeto ficou para trás. A regra atual é clara: ele se equipara ao acidente de trabalho para efeitos previdenciários (INSS). Se você sofreu um acidente nesse percurso, comunique imediatamente sua empresa e certifique-se de que a CAT seja emitida. Caso a empresa se negue a emitir a CAT ou a reconhecer a natureza acidentária do evento (insistindo em tratar como um afastamento por doença comum), é fundamental buscar orientação jurídica. Um advogado especialista poderá analisar as circunstâncias do acidente, confirmar seus direitos e ajudá-lo a garantir o recebimento do benefício correto (B91), o depósito do FGTS e a estabilidade no emprego. Não permita que a desinformação sobre a legislação vigente prejudique direitos que são seus por lei. Proteja-se conhecendo a regra atual sobre o acidente de trajeto.