Abandono Afetivo Gera Dever de Indenizar: Quando a Ausência do Pai ou da Mãe Vira Causa na Justiça

A certidão de nascimento garante o nome. A pensão alimentícia, em tese, garante o sustento. Mas e o cuidado, a presença, a participação na vida de um filho? O Direito brasileiro evoluiu para compreender que a paternidade e a maternidade são muito mais do-que obrigações materiais. Elas englobam um dever de cuidado, um componente essencial do poder familiar que, quando deliberadamente negligenciado, causa feridas profundas na alma de uma criança e viola sua dignidade. É nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisões históricas, consolidou o entendimento de que o abandono afetivo é um ato ilícito que pode, sim, gerar o dever de pagar uma indenização por danos morais. Este artigo mergulha nessa tese complexa e transformadora, que busca reparar, ainda que financeiramente, a dor da ausência.

O que é o “Dever de Cuidado” e Como Ele Vai Além da Pensão?

O poder familiar, conferido aos pais, não é um direito absoluto sobre o filho, mas um poder-dever. Isso significa que, junto com a autoridade, vem um pacote de obrigações inegociáveis. O dever de sustento, cumprido via pensão, é apenas um deles. O dever de cuidado, previsto no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), abrange a convivência, a assistência afetiva e psicológica, a orientação e a participação efetiva na formação do indivíduo. É o ato de estar presente, de se importar com a vida escolar, com a saúde, com as alegrias e tristezas do filho. A ausência voluntária e injustificada desse cuidado é o que caracteriza o abandono afetivo.

A Decisão do STJ: Por que o Abandono Afetivo é um Ato Ilícito?

Por muito tempo, a Justiça relutou em conceder indenizações por abandono, sob o argumento de que “não se pode obrigar ninguém a amar” e de que seria impossível “precificar o afeto”. A virada de chave do STJ foi sutil e brilhante. A tese vencedora, e hoje consolidada, não discute o amor, um sentimento que escapa ao controle do Direito. A indenização não é pela falta de amor, mas sim pelo descumprimento de um dever jurídico expresso: o dever de cuidado. Ao negligenciar esse dever, o genitor pratica um ato ilícito (conforme o art. 186 do Código Civil), pois causa um dano comprovado à vítima (o filho), que sofre uma lesão em seus direitos da personalidade, como a honra, a imagem e, principalmente, a sua integridade psíquica, um pilar da dignidade humana.

Não se Indeniza o Amor, mas se Pune a Negligência

É fundamental compreender a lógica por trás da reparação financeira. O dinheiro não irá comprar o carinho que não foi dado nem apagar as memórias de ausência. A indenização por abandono afetivo tem um duplo caráter:

  1. Caráter Punitivo-Pedagógico: Visa punir o genitor negligente por sua conduta ilícita, servindo como uma sanção e um desestímulo para que outros pais não ajam da mesma forma. É uma resposta da sociedade dizendo que aquele comportamento é intolerável.
  2. Caráter Compensatório: Busca oferecer à vítima uma satisfação, uma forma de amenizar a dor e o sofrimento. O valor pode, por exemplo, custear anos de terapia psicológica necessária para lidar com os traumas gerados pelo abandono, ajudando a vítima a reconstruir sua autoestima e saúde mental.

Como Comprovar o Abandono Afetivo na Prática?

Provar o abandono afetivo em um processo judicial exige uma construção cuidadosa de evidências, pois é preciso demonstrar a conduta omissiva do genitor e o dano sofrido pelo filho. Não basta uma relação distante ou conflituosa. É preciso que a ausência seja deliberada e prolongada. As principais provas utilizadas são:

  • Estudo Psicossocial: Uma perícia com psicólogos e assistentes sociais é quase sempre determinada pelo juiz para avaliar a dinâmica familiar e os impactos psicológicos do abandono na vida do filho. O laudo técnico é uma prova de imenso peso.
  • Testemunhas: Familiares, amigos, professores e vizinhos podem testemunhar sobre a ausência completa do genitor em momentos importantes da vida da criança (aniversários, formaturas, doenças).
  • Falta de Contato: A ausência de registros de ligações, mensagens ou qualquer outra forma de comunicação por longos períodos.
  • Provas Documentais: Fotos de família onde o genitor nunca aparece, boletins escolares que nunca foram assinados por ele, etc.

A busca por essa reparação é um direito do filho, muitas vezes exercido já na vida adulta, como uma forma de dar um fechamento jurídico e simbólico a uma vida inteira de negligência.

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