A “Teimosia” do Devedor: Quando o Não Pagamento Reiterado Justifica Medidas Mais Graves?

No universo das dívidas de alimentos, há uma diferença fundamental entre o devedor que enfrenta uma dificuldade financeira pontual e aquele que faz da inadimplência um hábito, um padrão de comportamento. Este último é o que a doutrina e a jurisprudência chamam de “devedor contumaz” ou “recalcitrante”: o indivíduo que repetidamente desafia as ordens judiciais e só cumpre sua obrigação sob a mais extrema pressão. Como a Justiça lida com essa “teimosia” deliberada? O não pagamento reiterado pode justificar uma escalada nas medidas coercitivas, tornando-as cada vez mais severas? A resposta é um sonoro sim. O sistema judicial tem memória e mecanismos para apertar o cerco contra quem abusa de sua paciência.

Identificando o Perfil do Devedor Contumaz: Um Padrão de Descaso

O devedor contumaz não é definido por um único atraso, mas por um padrão de comportamento que revela seu descaso com a obrigação. Suas características são bem conhecidas nos tribunais: ele frequentemente paga a dívida apenas no último minuto, após a decretação da prisão, e poucos meses depois volta a se tornar inadimplente, forçando o credor a iniciar todo o custoso e desgastante processo de execução novamente. Ele parece incorporar o processo judicial em seu “fluxo de caixa”, sabendo que a justiça tem um tempo de resposta e abusando dessa burocracia. Outros sinais incluem a ocultação deliberada de patrimônio, a alegação de dificuldades financeiras enquanto ostenta um padrão de vida incompatível nas redes sociais e a troca constante de endereços para dificultar a citação.

A Primeira Consequência: A Perda Total de Credibilidade Perante o Juiz

O primeiro e mais imediato efeito da contumácia é subjetivo, mas extremamente poderoso: a perda de credibilidade com o magistrado. A cada nova ação de execução, a imagem do devedor se desgasta. Uma justificativa de “dificuldades financeiras”, que poderia ser analisada com alguma benevolência para um devedor de primeira viagem, soa vazia e inverossímil quando apresentada pela terceira ou quarta vez pelo mesmo indivíduo. A reiteração do comportamento cria uma forte presunção de má-fé, tornando o juiz muito menos suscetível a aceitar desculpas, a conceder prazos ou a acreditar em promessas de pagamento. A paciência do julgador se esgota, e a caneta se torna mais pesada.

A Escalada das Medidas Coercitivas: Da Prisão às Sanções no Estilo de Vida

A resposta do sistema à teimosia é uma escalada progressiva de sanções. Se na primeira execução a ameaça de prisão pode ser a única medida, o cenário muda nas seguintes. Ciente do histórico do devedor, o juiz pode não apenas ser mais célere em decretar a prisão, mas também, a pedido do credor, passar a aplicar as medidas executivas atípicas de forma cumulativa com a prisão. Assim, além do mandado de prisão, o devedor contumaz pode se ver, simultaneamente, com a CNH suspensa, o passaporte apreendido e seus cartões de crédito bloqueados. Além disso, o prazo da prisão, que poderia ser de 30 dias na primeira vez, pode ser fixado diretamente no máximo legal de 90 dias nas reincidências, com o juiz fundamentando a severidade na conduta reiterada do executado.

O Salto para a Esfera Criminal: Da Inadimplência Contumaz ao Abandono Material

A consequência mais grave da teimosia é o risco de a conduta transbordar da esfera cível para a criminal. O não pagamento deliberado e repetido da pensão alimentícia é a prova mais contundente do dolo, da intenção consciente, que caracteriza o crime de abandono material, previsto no artigo 244 do Código Penal. O histórico de múltiplas execuções cíveis se torna a peça de acusação central que o Ministério Público utilizará para oferecer uma denúncia criminal. Se condenado, o devedor não enfrentará mais uma prisão civil de 3 meses, mas sim uma pena criminal de 1 a 4 anos de detenção, que gera antecedentes, mancha a “ficha” e tem consequências muito mais permanentes para a vida civil e profissional.

Desafiar a Justiça no cumprimento de uma obrigação tão sagrada como a alimentar é uma aposta perdida. A teimosia do devedor é respondida com a persistência e a severidade crescente do sistema. O que começa com uma simples ordem de pagamento pode rapidamente escalar para prisão, restrições de direitos, bloqueio da vida financeira e, no limite, uma condenação criminal por abandono. A mensagem do Judiciário ao devedor contumaz é clara: a sua memória pode ser curta, mas a nossa é longa e as consequências, progressivas.

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