A Prestação de Contas na Ação de Alimentos: O Pagador Pode Fiscalizar Como o Dinheiro é Gasto?

Esta é, talvez, uma das questões mais incendiárias e delicadas que permeiam o universo da pensão alimentícia. O genitor que paga mensalmente os alimentos, muitas vezes com grande sacrifício, vê o outro genitor ostentando um padrão de vida que parece incompatível e suspeita: o dinheiro destinado ao meu filho está sendo, na verdade, desviado para outros fins? Diante dessa desconfiança, nasce o desejo de exigir uma prestação de contas, uma espécie de “auditoria” nos gastos. Por muito tempo, a porta para esse tipo de fiscalização esteve completamente fechada pela Justiça. Contudo, uma evolução no entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) abriu uma fresta, não para uma devassa, mas para uma fiscalização pontual em casos gravíssimos, sempre com o foco no bem-estar da criança.
A Regra Geral e Sua Fundamentação: Não Cabe a Ação de Prestação de Contas
A posição tradicional e que ainda prevalece na maioria dos casos é a de que não é cabível a Ação de Prestação de Contas, um procedimento específico previsto no Código de Processo Civil, para fiscalizar a gestão dos recursos da pensão alimentícia. Os tribunais fundamentam essa recusa em diversos pilares. Primeiro, o valor pago a título de alimentos pertence ao filho, mas quem o administra é o genitor guardião, e esse valor se mistura às demais despesas da casa, sendo impraticável exigir comprovantes de cada quilo de arroz ou de cada conta de luz. Segundo, permitir tal ação abriria uma porta perigosa para o assédio processual, transformando a fiscalização em uma ferramenta de perseguição e vingança entre os ex-parceiros. Terceiro, a medida seria uma violação da privacidade e da autonomia da unidade familiar liderada pelo guardião.
A Exceção que Confirma a Regra: A Fiscalização em Casos Excepcionais
Apesar da regra geral, a realidade de casos extremos de má gestão levou o STJ, em decisões paradigmáticas (notadamente da Ministra Nancy Andrighi), a admitir uma forma de controle. Ficou estabelecido que, embora a Ação de Prestação de Contas seja inadequada, em situações excepcionais, onde existam indícios robustos e concretos de que os recursos estão sendo malversados em detrimento do bem-estar da criança, o genitor alimentante tem o direito de buscar uma forma de fiscalização judicial. Não se trata de um direito amplo de auditoria, mas de um remédio para situações patológicas, onde o desvio de finalidade do dinheiro é evidente e prejudicial ao alimentando.
Como Essa Fiscalização Funciona na Prática?
É crucial entender que não se trata de pedir recibos de supermercado. O genitor que desconfia do mau uso dos recursos deve ingressar com uma ação própria (que não terá o nome de “prestação de contas”) ou um incidente processual, e seu ônus da prova é altíssimo. Ele precisa apresentar evidências contundentes, como, por exemplo, provar que a criança está com a saúde debilitada, com mensalidades escolares atrasadas ou visivelmente negligenciada em suas necessidades básicas, enquanto, paradoxalmente, o genitor guardião ostenta luxos e gastos supérfluos e pessoais. Diante de uma prova tão forte, o juiz pode determinar medidas para assegurar o interesse do menor.
As Medidas que o Juiz Pode Tomar
Constatado o risco ao bem-estar da criança, o juiz não ordenará uma auditoria, mas poderá tomar medidas práticas e diretas para proteger o alimentando. A mais comum é a alteração na modalidade da prestação, determinando o pagamento in natura de parte dos alimentos. Isso significa que o juiz pode ordenar que o pai pague diretamente o boleto da escola, do plano de saúde ou do curso de inglês, em vez de depositar o valor total em dinheiro na conta do guardião. Em casos ainda mais graves e raros, o juiz pode determinar a realização de um estudo psicossocial para avaliar a dinâmica familiar ou, em última instância, até mesmo discutir a alteração da guarda. A fiscalização, portanto, não tem como objetivo punir o guardião, mas sim proteger a criança, garantindo que o dinheiro que lhe é destinado cumpra, de fato, sua sagrada finalidade.