A Oitiva da Criança no Processo de Guarda: Quando e Como Acontece?

A imagem de uma criança em um tribunal pode evocar sentimentos de apreensão e desconforto. Muitos pais imaginam seus filhos em um banco de testemunhas, sendo interrogados sob a pressão de um ambiente formal e hostil. Felizmente, essa imagem não corresponde à realidade do Direito de Família moderno. A oitiva da criança ou do adolescente em um processo de guarda é, hoje, um procedimento cuidadosamente protegido, focado em acolhimento e escuta, não em inquirição. Entender quando e, principalmente, como ela acontece é fundamental para desmistificar o processo e garantir que a voz do maior interessado na disputa – o próprio filho – seja ouvida de forma respeitosa e segura.

O direito da criança de ser ouvida em processos que afetam sua vida está consagrado em tratados internacionais (como a Convenção sobre os Direitos da Criança) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não se trata de uma ferramenta para os pais usarem o filho como testemunha de seu conflito, mas sim um direito da própria criança de expressar seus sentimentos, suas vontades e sua percepção sobre a dinâmica familiar. A lei não estabelece uma idade mínima rígida para que a oitiva ocorra. O critério é o discernimento: a capacidade da criança de compreender a situação e de se expressar. Geralmente, a partir dos 7 ou 8 anos, a oitiva já é considerada, e para adolescentes (maiores de 12 anos), ela é praticamente obrigatória, salvo em raras exceções.

Para garantir que esse momento não seja traumático, a legislação brasileira evoluiu para criar o “Depoimento Especial”, regulamentado pela Lei nº 13.431/2017. Este método é projetado para proteger a criança do ambiente e do conflito judicial. Na prática, funciona assim:

  • Ambiente Acolhedor: A criança não é levada à sala de audiências tradicional. A oitiva ocorre em uma sala separada, especialmente preparada para ser lúdica e informal, com brinquedos, sofás e materiais de desenho, o que a ajuda a relaxar e a se sentir segura.
  • Entrevistador Especializado: A conversa não é conduzida pelo juiz ou pelos advogados, mas por um profissional treinado em técnicas de entrevista com crianças e adolescentes, geralmente um psicólogo ou assistente social. Este profissional sabe como fazer perguntas abertas, não indutivas, que permitem à criança se expressar livremente.
  • Tecnologia Protetiva: O juiz, o promotor de justiça e os advogados das partes assistem a tudo em tempo real, por um sistema de vídeo, a partir da sala de audiências. Caso queiram fazer alguma pergunta, eles a submetem ao entrevistador, que a avaliará e, se pertinente, a traduzirá para uma linguagem adequada e não ameaçadora para a criança. Esse sistema evita o contato direto da criança com as figuras de autoridade e com o conflito entre os pais, prevenindo a revitimização.

É crucial gerenciar as expectativas sobre o peso da opinião da criança. A criança ou o adolescente não “decide” com quem vai morar. Sua vontade é um elemento de grande importância, mas não é o único. O juiz sabe que uma criança pequena pode ser influenciada por vantagens materiais ou por qual genitor é menos rigoroso com as regras. Por isso, a opinião dela será sempre ponderada em conjunto com as outras provas do processo, como o estudo psicossocial, a conduta dos pais e a análise de qual deles oferece melhores condições para o desenvolvimento integral do filho. No caso dos adolescentes, contudo, sua opinião manifestada de forma madura e fundamentada tem um peso enorme, e raramente um juiz decidirá em sentido contrário sem um motivo muito forte.

A preparação da criança para a oitiva é um ponto delicado. Ela não deve ser “treinada” ou instruída sobre o que dizer. Isso seria manipulação e seria facilmente percebido pelo entrevistador experiente. A melhor preparação é a honestidade. Os pais devem explicar, de forma simples, que ela vai conversar com uma pessoa legal em um lugar seguro, e que o mais importante é que ela fale a verdade sobre o que sente. A oitiva da criança, quando bem conduzida, é um ato de profundo respeito, que a reconhece como sujeito de direitos e protagonista de sua própria história.

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