A “Economia do Cuidado”: Por que o Trabalho Doméstico e a Criação dos Filhos Têm Valor Econômico no Divórcio?

Durante décadas, o trabalho realizado dentro de casa – limpar, cozinhar, lavar, e, principalmente, cuidar dos filhos – foi visto como uma “obrigação de amor”, um papel naturalizado, especialmente para as mulheres, e desprovido de valor econômico. Era o trabalho invisível. Essa percepção, no entanto, é a raiz de uma profunda injustiça que se revela de forma brutal no momento do divórcio. O Direito de Família brasileiro, em uma evolução notável, passou a incorporar o conceito de “economia do cuidado”, reconhecendo que o trabalho doméstico e a dedicação à criação dos filhos não são apenas atos de afeto, mas uma contribuição econômica real e mensurável para a construção do patrimônio e para o sucesso profissional do outro cônjuge. Esse reconhecimento está mudando a forma como juízes decidem sobre partilhas de bens e pensões, buscando um resultado mais justo e equitativo.

O Trabalho Invisível: O que é a Economia do Cuidado?

A economia do cuidado é um conceito desenvolvido por economistas e sociólogas feministas para dar visibilidade a todo o trabalho não remunerado que é essencial para a manutenção da sociedade e da própria economia formal. É o trabalho de cuidar de crianças, de idosos, de pessoas doentes, e de gerenciar o lar. Sem esse trabalho, o outro parceiro não teria a liberdade, o tempo e a tranquilidade para se dedicar à sua carreira, gerar renda e acumular patrimônio. Reconhecer a economia do cuidado é entender que o sucesso financeiro de uma família não é mérito exclusivo de quem traz o dinheiro para casa, mas sim o resultado de uma parceria, na qual o trabalho de cuidado foi um pilar fundamental.

A Presunção de Esforço Comum: Como o Cuidado com o Lar Ajuda a Construir o Patrimônio

A forma mais clara como o Direito brasileiro valora o trabalho de cuidado está na regra do regime da comunhão parcial de bens. A lei presume que todos os bens adquiridos onerosamente durante o casamento ou união estável são fruto do esforço comum do casal, devendo ser partilhados igualmente. Essa presunção de esforço comum é a tradução jurídica da economia do cuidado. A lei reconhece, implicitamente, que o cônjuge que se dedicou ao lar e aos filhos contribuiu, de forma decisiva, para que o outro pudesse trabalhar e adquirir aqueles bens. Portanto, na hora da partilha, não importa em nome de quem o bem está registrado; a contribuição do cuidado é equiparada à contribuição financeira.

A Abdicação da Carreira em Prol da Família e o Direito à Reparação

A injustiça se torna ainda mais evidente quando um dos cônjuges (na esmagadora maioria das vezes, a mulher) abre mão de sua própria carreira e de seu potencial de renda para se dedicar à família. No divórcio, ela se vê, muitas vezes, fora do mercado de trabalho, desatualizada e com imensa dificuldade de se reinserir, enquanto o outro parceiro está no auge de sua carreira. Para corrigir essa disparidade, a Justiça pode utilizar duas ferramentas: os alimentos compensatórios, para reequilibrar o padrão de vida de forma temporária, e, em casos mais extremos, uma indenização específica pela perda de uma chance, se ficar comprovado que a pessoa abdicou de uma carreira promissora em função de um projeto familiar que foi rompido unilateralmente pela outra parte.

Valorando o Cuidado: Uma Ferramenta para Partilhas Mais Justas

O reconhecimento da economia do cuidado empodera o cônjuge que se dedicou ao lar, dando-lhe argumentos sólidos para lutar por uma partilha mais justa. Não se trata de pedir um favor, mas de exigir o reconhecimento de uma contribuição econômica real. Esse conceito desafia a ideia de que o patrimônio tem um único “dono” (aquele que aufere a renda) e a substitui pela noção de que o patrimônio é fruto de uma sociedade, na qual o “capital de cuidado” foi tão importante quanto o “capital financeiro”. É uma mudança de mentalidade que reflete os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade, garantindo que o fim de uma relação não signifique uma sentença de vulnerabilidade econômica para quem dedicou sua vida ao trabalho invisível do cuidado.

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